sábado, 28 de junho de 2008

Brindes & favas

Na quinta-feira, a caminho do ganha-pão, ouvi na rádio que o governo havia publicado no D.R. um diploma que garantia às mulheres que praticassem o aborto voluntarimente, o subsidio de maternidade, bem como dias de licença, caso haja algum problema clínico. Embora esta última parte do diploma seja um passo lógico e necessário, o facto de dar um subsídio de maternidade a quem faz um aborto voluntariamente é mais uma prova de que vivemos numa sociedade que glorifica o hedonismo, o facilitismo e o transitório. Será verdade?
Viveremos ainda no Portugal de 1973 em que as pessoas não tinham acesso a métodos contraceptivos e à informação? Não. Vivemos no século XIX em que não existia a pilula (clássica e do dia seguinte), DIU's, preservativos de latex sintético, aceitação do sexo oral e da BDSM como práticas "não-perversas"? Também não. Então o que está por detrás desta medida?
O que esconde esta medida é a sociedade imediatista do Colombo, da sensualidade gordorosa das "revistas Cosmopolitan", da luxúria vazia do "Sexo e a cidade" tudo muito bem misturado com a velhíssima lógica do "isso é lá um problemas delas" (lógica que emerge de forma reciclada, curiosamente, em certos feminismos). Segundo o Director do Serviço de Obstétricia do Hospital de Guimarães "o aborto é cada vez mais usado como método contraceptivo", verificando-se que "muitas mulheres [ou talvez devesse dizer casais, já agora] não vão às consultas de planeamento familiar [requeridas pela lei]". Para quem não gosta, ou desconfie, do link (a Rádio Renascença) está aqui um estudo realizado em 1998 no Brazil que afirma exactamente a mesma coisa para uma realidade parecida com a nossa, o Estado de Rio Grande do Sul.
É verdade que isto é uma das perversões da vitória do "sim" no referendo. As pessoas, da lei aprovada em referendo, quiseram o brinde (o aborto em condições sanitárias) e deitaram fora a fava (a maçada das consultas de planeamento familiar - que chatisse!) como se faz com tudo hoje em dia.
Era natural isto acontecer, de resto. O Grande Satanás do Mundo Moderno é uma coisa chamada disciplina, uma das irmãs da responsabilidade. Disciplinar o prazer, sem no entanto o negar nem a si nem aos outros, era anteriormente o dever dos sábios. Hoje, é a imbecilidade dos tontos, quando muito. Se não veja-se:
A maior parte dos métodos contraceptivos requerem disciplina e cerceiam o prazer, diga-se o que se disser (no caso do preservativo, o que mais me custa é a mó de moinho atada à espontaneidade). A pílula requer, pelo menos, boa quimica hormonal, o que não está ao alcance de muitas mulheres. O DIU é ainda mais complicado. A lista não acaba. E são, todos eles, falíveis, claro.
Tudo junto, há que abdicar de um pouco do prazer imediato para permitir que o prazer no longo prazo não seja ameaçado. Não tem a perfeição de "ao natural", é verdade. Paciência: a vida é trágica.
Claro que o espirito moderno, avesso à noção trágica da vida, horroriza-se perante estes comentários. E portanto, pegou na palavra "direito" e escondeu com este manto diáfano a feia nudez da inconsciência, da glorificação da esterilidade e até o custo pessoal de colocar uma criança no mundo. Chega mesmo a roçar a fronteira da eugenia (como os extremos se tocam!) quando se fala nas "condições económicas" (reais, é verdade) com que nos deparamos hoje em dia para justificar o aborto como método contraceptivo em detrimento dos outros métodos.
É por isso que o governo, solícito, sabendo que muita gente se está nas tintas para as consultas de planeamento requeridas pela lei e referendadas pela sociedade, note-se, premeia este comportamento, elevando à dignidade da maternidade, o acto de abortar, compreensivel como medida extrema ou de saúde pública, censurável em tudo o mais. Dá votos e "é moderno".
Será que não repararam no que fizeram? Ou existo algo mais tenebroso, escondendo-se nas entrelinhas do diploma?
Há ainda outro problema: são conhecidas as histórias de pressões sofridas por mulheres em fábricas e empresas para abortar. Com o diploma, a porta fica ainda mais aberta a estas atitudes. Facilitismo é, portanto, o lema, à esquerda e à direita.

Mas chega de favas. A perversão da medida é tão grande que dentro de pouco tempo irá dar os seus nefastos frutos. É aguardar que passe o verão e veremos então as reacções.
Vamos, pois, ao brinde (A S. é a responsável por esta ideia de contrastar brindes & favas).

Na noite de 5º feira, em resultado desta fava governamental, armei-me em Jonathan Swift e enviei à ED, que é uma rapariga que adoro, uma proposta bastante decente para que ela possa ganhar umas coroas com o subsidio de maternidade, sem contudo passar por uma sala de partos. Passariamos umas noites de sábado mais agradáveis do que o habitual, é verdade. Mas isso seria a condição necessária, como diria Aristóteles. Ela respondeu-me, entre outros comentários, com um poema:

(…) Na noite calma,

a poesia da Serra adormecida

vem recolher-me em mim.

E o combate magnífico da Cor

que eu vi de dia;

e o casamento do cheiro a maresia

com o perfume agreste do alecrim;

e os gritos mudos das rochas sequiosas que o Sol

castiga – passam a dar-se em mim.

E todo eu me alevanto e todo eu ardo.

Chego a julgar a Arrábida por Mãe,

quando não serei mais que seu bastardo.

A minha alma sente-se beijada

Pela poalha da hora do Sol-pôr;

Sente-se a vida das seivas e a alegria

que faz cantar as aves na quebrada;

e a solidão augusta que me fala

pela mata cerrada,

aonde o ar no peito se me cala,

desceu da Serra e concentrou-se em mim (…)

Sebastião da Gama

In "Serra-Mãe", 1943


Perguntaste-me o que achei eu do poema. Acho que vais dar uma excelente mãe. Bastante feliz será o pai, sem dúvida.
bjs grandes ED

nota: a foto do post encontra-se aqui

sábado, 21 de junho de 2008

Mais além

Só para que não se diga, como fez um amigo meu aqui há dias, que o meu blog é catastrofista, decidi abordar - finalmente! - o tema da exploração espacial e os recentes sucessos que têm sido alcançados em Marte.
Visto por muitos como uma espécie de insulto à pobreza mundial (como se esta pudesse ser combatida sem espírito científico, apenas com gemidos ideológico-religiosos mal disfarçados) a exploração espacial é vista por outros como mera propaganda ou, pior, como a expansão da "maldade humana" no cosmos. É verdade que "velhos do Restelo" existirão sempre mas sou de opinião que opor-se à exploração espacial equivale a condenar a espécie humana a um futuro do género "Matrix", se correr "bem", ou a um destino semelhante ao dos dinossauros, se correr mal. Acho mesmo que caso a humanidade consiga vencer os desafios gémeos do aquecimento global e do "pico petrolífero" a problemática associada à saída do berço terrestre irá emergir como a grande questão evolutiva seguinte. Em resumo: é dever de toda a espécie expandir-se e ocupar o maior número de nichos biológicos que possa. Estagnar é morrer.
Mas chega de filosofia (ideologia?) espacial; deixarei isso para outros posts.
No que diz respeito ao Planeta Marte é de saudar a confirmação de água gelada (permafrost?) encontrada no hemisfério norte do Planeta Vermelho.
As fotografias obtidas pela sonda Phoenix Mars Lander no início deste mês fizeram-me lembrar as pegadas descobertas em Laetoli, na Tanzânia e que datam de há 3,6 milhões de anos. Ambas retratam um momento transcendente para a nossa espécie: as marcas de Laetoli o mais antigo registo da bipedia que libertou as nossas mãos; a de Marte a possibilidade de enviar naves a esse planeta sem nos preocuparmos em carregá-las com combustível para o retorno, tornando a sua colonização uns milhões de dólares e umas décadas mais próximas de nós.
Também é verdade que a possibilidade de se encontrar fósseis ou mesmo vida microbiana em Marte aumenta, o que é bom, tanto em termos biológicos como cosmológicos. Acho, porém, esta hipótese algo bastante remoto. Confesso considerar toda esta agitação em termos de vida alienigena no sistema solar (com a excepção do enigma de Europa) benéfica apenas para manter as missões sob o olhar favorável da opinião pública e pergunto-me até que ponto não será mantida pelos próprios cientistas. É um pequeno pecado; como muitos pequenos pecados anteriores (a ida a Lua, admito) pode dar dividendos sob a forma de avanços na geologia planetária ou no aperfeiçoamento da robótica espacial, essencial, se queremos aprender a destruir um cometa ou asteroide com intenções Neojurássicas.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Get real

A l. parece, na fotografia à esquerda, acabada de saír das mãos de Rodin. Na realidade, no momento em que foi tirada pensamento algum percorria a sua cabeça: apenas o vazio da perplexidade substituía o vácuo. Não era só ela; uns quantos milhões de portugueses sentiam o mesmo e só o dever artístico para com a cabine me arrancou desse torpor e abrigou os meus dedos a tirar esta foto.
Afinal já não vamos ser campeões da Europa. Vamos, isso sim, embora tenhamos saído de cabeça erguida (desta vez foi mesmo verdade!), acordar todos amanhã e afocinhar no marasmo sem remédio que é o dia-a-dia português.
Agora o Sr. Primeiro-ministro vai ter mesmo de lidar com os camionistas, os taxistas e os agricultores.
Agora os Sr. Deputados do PSD, PCP, PP E BE terão de fingir que são a oposição e culpar o PS, respectivamente, do preço do petróleo,
da morte de Marx, da inexistência de Deus e do fim da Revolução.
Agora os directores dos canais de televisão terão de inventar que raio hão-de pôr no ar.
Agora a TVI terá de pensar no rombo financeiro que a nossa saída do Euro irá provocar.
Agora as Câmaras Municipais terão de explicar aos utentes que o aluguer dos contadores voltará a ser pago sob o nome de "Taxa de disponibilização de água" .
Agora bombeiros e incendiários terão de começar a pensar que a época dos incêndios está aí mesmo à porta.
Agora vou ter de aturar o meu chefe, que é um benfiquista doentio, culpar o Ricardo - através da minha sportinguista pessoa - do desaire da pátria neste Euro 2008.
F***-**!

Post Scriptum: Já agora, convinha que fosse dada a devida atenção à noticia que saiu no jornal inglês Telegraph comunicando que o BIS (Bank of International Settlements) advertiu estar o mundo à beira de um colapso financeiro à escala da Grande Depressão. Tendo em conta que o BIS é a última rede de segurança existente depois de derrotados os Bancos Centrais (incluindo o ECB e a FED) isto são notícias demasiado más para poderem passar despercebidas. Espero que os senhores e senhoras do governo e da oposição se lembrem, pelo menos, de ler os relatórios (PDF) onde a advertência é feita.
Depois não venham dizer que não foram avisados e "que não podiam prever" como afirmou recentemente o Eng. Sócrates por causa do preço do petróleo.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Cultura americana (Re:)

Caro J.S.:
Agradeço imenso a atenção por esta cabine e os comentários que deixou.

Sou de opinião, porém, que não me consegui exprimir de forma correcta na maneira como tratei o quadro de Norman Rocwell "Runaway". Note que eu não acho que a América (dos anos 40/50 que é a América aí retratada) fosse uma sociedade segura, embora o fosse mais do que a actual, ou democrática - no sentido que actualmente compreendemos a democracia - muito menos que as armas nas mãos de qualquer um possam dar segurança a quem quer que seja. Os americanos de então, sobretudo a América branca (e, suspeito, também a América não branca que só não tinha armas porque ainda não tinha dinheiro para tal), é que achavam isso e o artista ao conceber o quadro, fá-lo para ir de encontro a esse desejo. Este quadro destila todos esses sentimentos de segurança e satisfação complacente, aliás, como um porco no espeto destila gordura e o génio de Norman Rocwell consiste precisamente em ter concebido um registo tão completo. Dito isto, acrescento que não está sozinho no que depreendo ser a sua apreciação do quadro. Pelo que sei, o artista tem sido uma espécie de bombo da festa dos críticos de arte desde os anos 70, cujos dedos apontam as mesmas feridas por si indicadas. É um erro, no meu entender.

Deixo pois, agora, o seu comentário e parto para o que entendo ser o que está por detrás dele e mais para responder aos tais críticos dos anos 70 do que a si (detesto o meio universitário americano de ciências sociais e de belas-artes por reaccionárias razões. A expansão das suas ideias à Europa é uma parte do lado esquerdo do imperialismo americano, se quiser):

A América retratada por N.R., falsa ou não, é tão digna de ser retratada artisticamente como a América que o não era. Será que os murais de Diego Rivera retratavam a totalidade Mexicana? Acho que não. E ele seria menos genial por isso? O seu valor é inquestionável.

Caricaturando o argumento das contradições da pintura de N.R. equivale a dizer que as ideias retratadas na Capela Sistina são um monte de contradições pois aquele Deus não existe e as histórias da Bíblia não passam de um conjunto de lendas do Médio Oriente recicladas pelos profectas judaicos. Não existe e são-no, de facto. Mas a questão não é essa.

***

Há ainda a questão do Império Americano deixar uma legado tão duradouro como o do Império Romano e isso ser uma tragédia. Eu tenho uma opinião que penso ser neutra em relação ao facto de ser uma tradégia. Com isto quero dizer que os Impérios são inevitabilidades históricas e que na nossa era a vez cabe à América. Paciência; existiam hipóteses piores (os nazis, os soviéticos), se serve de consolação.

É trágico vivermos com as consequências do Império Americano nos próximos 2000 anos? Talvez. Mas apenas no sentido em que o legado do Império Mongol o foi para a China do século XIII em diante ou o legado dos Seljucidas foi trágico para a actualidade dos povos de origem Turca. Quando muito poderá ser uma tragédia por causa do poder da tecnologia envolvida no legado (armas nucleares, aquecimento global, para não ir mais longe), o que não é pouco. Mas isso não tem a ver com qualquer perversidade intrínseca à América pois outras sociedades teriam feito o mesmo se tivessem tido essa chance (eu acredito que o ser humano é mau, ganancioso e estouvado por natureza).

Pela extensão da prosa acima, escrita esta tarde, já percebeu que tenho imenso que fazer no meu ganha-pão. Os funcionários públicos não têm emenda, de facto.

Obrigado pela visita. Se tem um blog envie o link que eu junto-o às "Cabines a visitar" no layout do meu.

Rasputine Zoompt

PS: Excelente blog (website) a visitar para se perceber a América actual. Revolucionou a minha visão da dita, pelo menos: http://www.kunstler.com/
O seu autor é um membro (registado) do Partido Democrata amargurado com o espectáculo que os E.U.A. lhe oferecem. O homem já escreveu na revista Rolling Stone, é romancista e possuídor de uma grande capacidade de sátira. A ver.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Cultura americana

Hoje tive uma pega com uma colega do ganha-pão por causa dos Americanos. Dizia ela que os Estados Unidos são uma sociedade "sem história e sem cultura" e que são todos "estupidos e ignorantes".
Estas enormidades têm sido um refrão muito em voga na Europa (mesmo na Europa pindérica e ignorante que é Portugal) nos últimos cem anos e convém de uma vez por todas combatê-lo, pois, além de falso é injusto. Ainda por cima, propagado por pessoas que se vestem como americanos, ouvem música americana (ou dela descendente), vivem em subúrbios e vêem o mundo através de lugares-comuns criados pela América é, no mínimo, ridículo.
Serve este post para ajudar a combater o miasma intelectual que continua a corroer alguns cerebros. Seria bom encararmos o Império americano mais denso e antigo que os Bush ou o McDonald e perceber que o seu legado será porventura tão durador como o do Império Romano. Além disso, como nos tornámos nos novos gregos (até os mesmos defeitos começos a ter; só espero que um dia não nos apareçam turcos pela frente) perceber os nossos filhos espirituais é, afinal, uma boa maneira de nos percebermos a nós próprios.

Vou falar sobre um tema de que gosto bastante, a pintura americana do século XX, sobretudo dois dos meus pintores favoritos:
Norman Rocwell e Edward Hopper. Eclipsada pela pintura europeia do mesmo periodo, este campo da arte americana é largamente desconhecido entre nós (com a provável excepção da pop art). Através das obras destes autores vemos representadas não só a sociedade mas também a história do país entre 1920 e 1965, a época afinal que viu a América passar de grande potência da democracia ao apogeu imperial e respectiva húbris.

Norman Rocwell e Edward Hopper são duas faces da mesma moeda. Sugiro que sigam os links da wikipedia e conheçam estes dois artistas.

O primeiro é responsável pela figura do Pai Natal e por alguns dos anúncios mais antigos da Coca-cola, por exemplo. É um especialista nos momentos felizes do dia-a-dia familiar da América. As cores são vivas e badalam como sinos, eternamente banhadas pelo sol (na maioria dos quadros e gravuras). É o pintor da felicidade, da alegria e da inocência, como se fosse uma espécie de Renoir norte-americano sem os nus e com veia de caricaturista.


Este quadro, chamado "The runaway" (o fugitivo) é um primor de subtileza e boa disposição. Trata do mito norte-americano da criança fugitiva, o qual, aborda de forma romantizada o tema da passagem da infância para a adolescência. É um mito totalmente estranho à experiência Europeia, repleta de guerras, raptos e infanticídio. Mas nos vastos espaços pacíficos da América do século XX, podia sonhar-se com crianças que partem para "conhecer o mundo com uma trouxa às costas" (Tom Sawyer), sem nada de mal lhes acontecer e rapidamente reencontradas. Neste quadro, retratando o exacto momento em que o miúdo atinge o auge da sua aventura ao interagir com adultos no espaço destes, sabe-se desde logo que tudo irá acabar bem. A figura paterna e augusta do polícia, com a sua pistola distinguindo-se para sossegar alguma dúvida que podesse haver, é cumplice do dono do estabelecimento igualmente divertido pela situação. Percebe-se que após o lanche os pais serão avisados e irão buscá-lo; a ideia do sofrimento destes é constantemente varrida pela presença da autoridade e do cidadão bondoso. Tudo acabará, pois, de forma previsível: a vida é segura na América, mas suficientemente livre para permitir, ao mesmo tempo, a ilusão de uma aventura formadora de carácter e um quadro bem disposto.
É o pintor da bondade da alma americana.

Quanto a Edward Hopper parece, à primeira vista, ser diferente, como a noite o é do dia.

É o pintor da solidão da alma americana. Alguns dos seus quadros parecem um cruzamento da atmosfera do filme Blade runner (Riddley Scott assume, aliás, essa semelhança) com Toulose-lautrec. Mas em vez de cabarets e dançarinas, existem cafetarias, quartos de hotel, ruas semi-desertas, faróis, janelas com vista sobre casais, bombas de gasolinas esquecidas numa qualquer estrada rural e nus solitários lendo livros.
O quadro à direita, chamado "Nighthawks" (gaviões nocturnos), é talvez o mais conhecido do pintor. Datado de 1942, retrada um restaurante aberto toda a noite povoado por noctívagos fechados sobre si próprios. Mas há algo de estranho no momento retratado. Como disse um dos seus biografos, Lloyd Goodrich, nos seus quadros, os personagens interagem uns com os outros e com o ambiente mas de uma forma que parece que o climax da cena ou já sucedeu ou está prestes a acontecer. Esta é uma das características mais interessantes que separam os dois artistas. Norman Rockwell retrata o instante sublime em que humor, o amor e a bondade do americano interagem para criar um ponto de chegada ou de partida enquadrado numa fábula moral. Hopper retrata também um momento, mas esse momento terá de ser o espectador a recriar dentro de si pois o artista só nos permite visualizar as causas de algo ou as suas consequências. Nele participamos de forma totalmente individualizada na solidão de um personagem ou de uma paisagem fazendo surgir em nós a ideia de que já vivemos - de forma angustiada - aquele momento.
O quadro "Nighthawks" tornou-se, assim, um ícone da América urbana e solitária. E através dela tornou-se também identificável para nós. Substitua-se o restaurante do quadro por uma daquelas roloutes de bifanas que existem na 24 de Julho. Quantas vezes, às tantas da manhã, depois da noite regada a alcool, não sentimos nós já a solidão que assola os personagens do quadro?
Muito mais podia ser dito mas francamente agora é hora de ir trabalhar.
Por vezes as horas aqui no ganha-pão arrastam-se indolentes. Como se algo estivesse prestes a acontecer e nunca mais acontece...
Valha-nos o google e os pintores americanos.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

O maior espectáculo do mundo

Folheava já o Livro do Dessassossego, sintoma de que algo vai mal comigo, quando o meu amigo T. me convida para ir ver o jogo Holanda-França a casa dele; frango e cerveja incluída. Uma coisa de homens portanto. Foi quando bastou para afastar a onda pessimista que desde a última quarta-feira me tem andado a roer (apesar da magnífica vitória da pátria). Ainda bem; Fernando Pessoa em prosa é demasiado angustiante para abrir o fim de semana, sobretudo um fim de semana que se irá resumir a Domingo, visto amanhã ir trabalhar para a sede.
Em boa hora o fez; não só para me levantar o ânimo. O espectáculo que vi transmitido de Berna mostra claramente que o futebol é bem mais do que um desporto: é uma fiel metáfora da vida. Não só a Holanda que parece uma pintura saída das mãos de Rembrandt mas também a França, a jogar com a fúria agonizante vista em Waterloo, sabendo-se perdida mas acreditando sempre que poderia dar a volta ao resultado num rasgo brilhante.
É um desperdício, de facto, afundarmo-nos em comiseração. Até a derrota, mesmo pesada, pode ser redentora.

Morrer sim - como dizia o outro - mas devagar...

quinta-feira, 12 de junho de 2008

O Estado vulnerável e a primeira vítima

Era de prever. Curiosamente aconteceram neste mês de Europeu, talvez por um capricho dos Deuses, por entre o torpor orgasmático de vitórias a brincar. Por um lado temos a primeira vítima mortal portuguesa do "pico petrolífero" e por outro, temos o primeiro ministro, esse pináculo de soberba, confessar ter sentido o "Estado vulnerável". Nem a ASAE lhe valeu, ao que parece.
Não vou aqui esmiuçar o contexto da crise, que muitos persistem em julgar resultado de uma qualquer especulação bolsista dos "ricos" e consequentemente transitória. Não é nem uma coisa nem outra, claro, e o que é pior não parece amanhecer na mente do primeiro ministro que isto vem para ficar e que as cedências feitas aos camionistas são incomportáveis a médio prazo (já agora verifiquem a reacção de Zapatero perante o mesmo problema).

Disse o Sr. Sócrates, no último debate parlamentar quinzenal, que "ninguém poderia prever a subida do preço do petróleo" para os níveis que se verificam hoje.

Ah não? Já não falo nas centenas de livros, artigos de cientistas e até websites dedicados desde o início do século ao tema do "pico petrolífero". Cito, por exemplo, o constante matraquear do petróleo ser um recurso finito que a minha geração sofreu quando este tema era tratado no ensino secundário, sob a rúbrica "meio ambiente". Então não sabia o Sr. Sócrates (um engenheiro!) do carácter finito do mesmo? Ou será que, tal como milhões de outros seres humanos, o Sr. Sócrates acha que isso não tem nada a ver com a actual situação? E a entrada dos consumidores chineses e indianos na equação? Não tocou nenhuma campainha de alarme? E os srs. Deputados porque razão falaram apenas de irrelevâncias neste debate parlamentar? Dr. Louçã: esta é a sua oportunidade! o caos que aí vem será um rico estrume onde poderá medrar a revolução que tanto apregoa.

A mim choca-me olhar para esta gente que nos governa e ver um bando de cegos às apalpadelas.

Não nos esqueçamos que ainda há três meses atrás o tema quente era se deviamos construir um aeroporto gigantesco na Ota ou um grande aeroporto em Alcochete. Lembro-me, aterrado, de ver na RTP1 uma auto-intitulada elite de engenheiros opinar sobre o tema impondo a sua capacidade de prever o futuro como garante da exequibilidade do projecto. Milhões de passageiros em 2010, biliões em 2020, etc, etc, etc. Lembro-me de ter sido gozado por conhecidos e familiares por, na altura, haver sugerido que Tires seria suficiente para os passageiros aéreos em 2020.

Caro leitor: que cenário acha agora plausivel perante o colapso que vemos à nossa volta? Lembro que nesta semana a Portela ficou reduzida ao combustivel para voos de emergencia.

É triste chegar à conclusão que o nossos dirigentes não estão minimamente preparados para lidar com o que aí vem. E é assustador constatar que estando o barril de crude à volta dos 135 dólares já tenha havido uma vítima mortal ficando o Estado (e a sociedade) impotentes para perceber para onde caminhamos. O que acontecerá quando estiver a 180 dólares? E a 250?
Por que razão não se revitalizam, desde já, as linhas de comboios para que possamos passar sem as chantagens dos camionistas? Porque demora tanto tempo o TGV para podermos continuar ligados à Espanha e à Europa? O tempo começa a escassear...

Parece-me que seremos a primeira nação do Ocidente a mergulhar na Idade Média.
Bom... em alguma coisa, para além do futebol, haveriamos de ser os primeiros...

Pão & Circo - A Pátria em grande



O que vale a este país ainda vão sendo os pontapés na bola. O primeiro e segundo jogo foram uma alegria tendo em conta que do outro lado não estavam propriamente onze pinos.
Maravilhosa foi, porém, a companhia. No primeiro jogo, da minha família (não toda, uma parte estava em Castelo de Vide, noutras festas em Lisboa, no Brasil e também na Suiça); no segundo jogo, dos meus amigos (não todos que não cabiam em minha casa!)
Ainda são estes momentos que fazem valer a pena a vida.
Só foi pena ter perdido o filme do primeiro jogo.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

As minhas guerras nº3

No início parecia a aurora do dia da vitória. Surpreendido por um raiar isento de dificuldades a força expedicionária conseguiu mesmo desembarcar um dia antes do previsto. E foi gloriosa a manhã: parecia a paz final, ali tão perto, despontando entre o calor da chegada do verão e a conquista sucessiva das encruzilhadas estratégicas.
Veio depois o dia seguinte; pequenas vitórias acompanharam o evoluir das horas. Chegou a tarde, sob os gritos da multidão entrou-se na cidade aparentemente deserta de forças hostis. Seria possível tamanha facilidade?
Desabou então o céu no auge da alegria. Uma parede de artilharia irrompeu. Tão furiosa e certeira foi a salva que ainda ecoavam gritos de alegria quando se percebeu que a fortuna virara já as costas aos até aí vitoriosos soldados. E num segundo, como em tantas outras batalhas, o cruel deus da guerra, transformou a felicidade em debandada.
Restou fugir para as colinas junto à praia. Cavar lamacentos buracos e esperar, uma vez mais, a eterna guerra de atrito que a campanha pretendia acabar.
Que sucedeu? Que beijo roubado a que citadina despoletou as iras? Que funesto acontecimento transformou esta campanha num novo Gallipoli?