sábado, 28 de junho de 2008

Brindes & favas

Na quinta-feira, a caminho do ganha-pão, ouvi na rádio que o governo havia publicado no D.R. um diploma que garantia às mulheres que praticassem o aborto voluntarimente, o subsidio de maternidade, bem como dias de licença, caso haja algum problema clínico. Embora esta última parte do diploma seja um passo lógico e necessário, o facto de dar um subsídio de maternidade a quem faz um aborto voluntariamente é mais uma prova de que vivemos numa sociedade que glorifica o hedonismo, o facilitismo e o transitório. Será verdade?
Viveremos ainda no Portugal de 1973 em que as pessoas não tinham acesso a métodos contraceptivos e à informação? Não. Vivemos no século XIX em que não existia a pilula (clássica e do dia seguinte), DIU's, preservativos de latex sintético, aceitação do sexo oral e da BDSM como práticas "não-perversas"? Também não. Então o que está por detrás desta medida?
O que esconde esta medida é a sociedade imediatista do Colombo, da sensualidade gordorosa das "revistas Cosmopolitan", da luxúria vazia do "Sexo e a cidade" tudo muito bem misturado com a velhíssima lógica do "isso é lá um problemas delas" (lógica que emerge de forma reciclada, curiosamente, em certos feminismos). Segundo o Director do Serviço de Obstétricia do Hospital de Guimarães "o aborto é cada vez mais usado como método contraceptivo", verificando-se que "muitas mulheres [ou talvez devesse dizer casais, já agora] não vão às consultas de planeamento familiar [requeridas pela lei]". Para quem não gosta, ou desconfie, do link (a Rádio Renascença) está aqui um estudo realizado em 1998 no Brazil que afirma exactamente a mesma coisa para uma realidade parecida com a nossa, o Estado de Rio Grande do Sul.
É verdade que isto é uma das perversões da vitória do "sim" no referendo. As pessoas, da lei aprovada em referendo, quiseram o brinde (o aborto em condições sanitárias) e deitaram fora a fava (a maçada das consultas de planeamento familiar - que chatisse!) como se faz com tudo hoje em dia.
Era natural isto acontecer, de resto. O Grande Satanás do Mundo Moderno é uma coisa chamada disciplina, uma das irmãs da responsabilidade. Disciplinar o prazer, sem no entanto o negar nem a si nem aos outros, era anteriormente o dever dos sábios. Hoje, é a imbecilidade dos tontos, quando muito. Se não veja-se:
A maior parte dos métodos contraceptivos requerem disciplina e cerceiam o prazer, diga-se o que se disser (no caso do preservativo, o que mais me custa é a mó de moinho atada à espontaneidade). A pílula requer, pelo menos, boa quimica hormonal, o que não está ao alcance de muitas mulheres. O DIU é ainda mais complicado. A lista não acaba. E são, todos eles, falíveis, claro.
Tudo junto, há que abdicar de um pouco do prazer imediato para permitir que o prazer no longo prazo não seja ameaçado. Não tem a perfeição de "ao natural", é verdade. Paciência: a vida é trágica.
Claro que o espirito moderno, avesso à noção trágica da vida, horroriza-se perante estes comentários. E portanto, pegou na palavra "direito" e escondeu com este manto diáfano a feia nudez da inconsciência, da glorificação da esterilidade e até o custo pessoal de colocar uma criança no mundo. Chega mesmo a roçar a fronteira da eugenia (como os extremos se tocam!) quando se fala nas "condições económicas" (reais, é verdade) com que nos deparamos hoje em dia para justificar o aborto como método contraceptivo em detrimento dos outros métodos.
É por isso que o governo, solícito, sabendo que muita gente se está nas tintas para as consultas de planeamento requeridas pela lei e referendadas pela sociedade, note-se, premeia este comportamento, elevando à dignidade da maternidade, o acto de abortar, compreensivel como medida extrema ou de saúde pública, censurável em tudo o mais. Dá votos e "é moderno".
Será que não repararam no que fizeram? Ou existo algo mais tenebroso, escondendo-se nas entrelinhas do diploma?
Há ainda outro problema: são conhecidas as histórias de pressões sofridas por mulheres em fábricas e empresas para abortar. Com o diploma, a porta fica ainda mais aberta a estas atitudes. Facilitismo é, portanto, o lema, à esquerda e à direita.

Mas chega de favas. A perversão da medida é tão grande que dentro de pouco tempo irá dar os seus nefastos frutos. É aguardar que passe o verão e veremos então as reacções.
Vamos, pois, ao brinde (A S. é a responsável por esta ideia de contrastar brindes & favas).

Na noite de 5º feira, em resultado desta fava governamental, armei-me em Jonathan Swift e enviei à ED, que é uma rapariga que adoro, uma proposta bastante decente para que ela possa ganhar umas coroas com o subsidio de maternidade, sem contudo passar por uma sala de partos. Passariamos umas noites de sábado mais agradáveis do que o habitual, é verdade. Mas isso seria a condição necessária, como diria Aristóteles. Ela respondeu-me, entre outros comentários, com um poema:

(…) Na noite calma,

a poesia da Serra adormecida

vem recolher-me em mim.

E o combate magnífico da Cor

que eu vi de dia;

e o casamento do cheiro a maresia

com o perfume agreste do alecrim;

e os gritos mudos das rochas sequiosas que o Sol

castiga – passam a dar-se em mim.

E todo eu me alevanto e todo eu ardo.

Chego a julgar a Arrábida por Mãe,

quando não serei mais que seu bastardo.

A minha alma sente-se beijada

Pela poalha da hora do Sol-pôr;

Sente-se a vida das seivas e a alegria

que faz cantar as aves na quebrada;

e a solidão augusta que me fala

pela mata cerrada,

aonde o ar no peito se me cala,

desceu da Serra e concentrou-se em mim (…)

Sebastião da Gama

In "Serra-Mãe", 1943


Perguntaste-me o que achei eu do poema. Acho que vais dar uma excelente mãe. Bastante feliz será o pai, sem dúvida.
bjs grandes ED

nota: a foto do post encontra-se aqui

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