segunda-feira, 16 de junho de 2008

Cultura americana

Hoje tive uma pega com uma colega do ganha-pão por causa dos Americanos. Dizia ela que os Estados Unidos são uma sociedade "sem história e sem cultura" e que são todos "estupidos e ignorantes".
Estas enormidades têm sido um refrão muito em voga na Europa (mesmo na Europa pindérica e ignorante que é Portugal) nos últimos cem anos e convém de uma vez por todas combatê-lo, pois, além de falso é injusto. Ainda por cima, propagado por pessoas que se vestem como americanos, ouvem música americana (ou dela descendente), vivem em subúrbios e vêem o mundo através de lugares-comuns criados pela América é, no mínimo, ridículo.
Serve este post para ajudar a combater o miasma intelectual que continua a corroer alguns cerebros. Seria bom encararmos o Império americano mais denso e antigo que os Bush ou o McDonald e perceber que o seu legado será porventura tão durador como o do Império Romano. Além disso, como nos tornámos nos novos gregos (até os mesmos defeitos começos a ter; só espero que um dia não nos apareçam turcos pela frente) perceber os nossos filhos espirituais é, afinal, uma boa maneira de nos percebermos a nós próprios.

Vou falar sobre um tema de que gosto bastante, a pintura americana do século XX, sobretudo dois dos meus pintores favoritos:
Norman Rocwell e Edward Hopper. Eclipsada pela pintura europeia do mesmo periodo, este campo da arte americana é largamente desconhecido entre nós (com a provável excepção da pop art). Através das obras destes autores vemos representadas não só a sociedade mas também a história do país entre 1920 e 1965, a época afinal que viu a América passar de grande potência da democracia ao apogeu imperial e respectiva húbris.

Norman Rocwell e Edward Hopper são duas faces da mesma moeda. Sugiro que sigam os links da wikipedia e conheçam estes dois artistas.

O primeiro é responsável pela figura do Pai Natal e por alguns dos anúncios mais antigos da Coca-cola, por exemplo. É um especialista nos momentos felizes do dia-a-dia familiar da América. As cores são vivas e badalam como sinos, eternamente banhadas pelo sol (na maioria dos quadros e gravuras). É o pintor da felicidade, da alegria e da inocência, como se fosse uma espécie de Renoir norte-americano sem os nus e com veia de caricaturista.


Este quadro, chamado "The runaway" (o fugitivo) é um primor de subtileza e boa disposição. Trata do mito norte-americano da criança fugitiva, o qual, aborda de forma romantizada o tema da passagem da infância para a adolescência. É um mito totalmente estranho à experiência Europeia, repleta de guerras, raptos e infanticídio. Mas nos vastos espaços pacíficos da América do século XX, podia sonhar-se com crianças que partem para "conhecer o mundo com uma trouxa às costas" (Tom Sawyer), sem nada de mal lhes acontecer e rapidamente reencontradas. Neste quadro, retratando o exacto momento em que o miúdo atinge o auge da sua aventura ao interagir com adultos no espaço destes, sabe-se desde logo que tudo irá acabar bem. A figura paterna e augusta do polícia, com a sua pistola distinguindo-se para sossegar alguma dúvida que podesse haver, é cumplice do dono do estabelecimento igualmente divertido pela situação. Percebe-se que após o lanche os pais serão avisados e irão buscá-lo; a ideia do sofrimento destes é constantemente varrida pela presença da autoridade e do cidadão bondoso. Tudo acabará, pois, de forma previsível: a vida é segura na América, mas suficientemente livre para permitir, ao mesmo tempo, a ilusão de uma aventura formadora de carácter e um quadro bem disposto.
É o pintor da bondade da alma americana.

Quanto a Edward Hopper parece, à primeira vista, ser diferente, como a noite o é do dia.

É o pintor da solidão da alma americana. Alguns dos seus quadros parecem um cruzamento da atmosfera do filme Blade runner (Riddley Scott assume, aliás, essa semelhança) com Toulose-lautrec. Mas em vez de cabarets e dançarinas, existem cafetarias, quartos de hotel, ruas semi-desertas, faróis, janelas com vista sobre casais, bombas de gasolinas esquecidas numa qualquer estrada rural e nus solitários lendo livros.
O quadro à direita, chamado "Nighthawks" (gaviões nocturnos), é talvez o mais conhecido do pintor. Datado de 1942, retrada um restaurante aberto toda a noite povoado por noctívagos fechados sobre si próprios. Mas há algo de estranho no momento retratado. Como disse um dos seus biografos, Lloyd Goodrich, nos seus quadros, os personagens interagem uns com os outros e com o ambiente mas de uma forma que parece que o climax da cena ou já sucedeu ou está prestes a acontecer. Esta é uma das características mais interessantes que separam os dois artistas. Norman Rockwell retrata o instante sublime em que humor, o amor e a bondade do americano interagem para criar um ponto de chegada ou de partida enquadrado numa fábula moral. Hopper retrata também um momento, mas esse momento terá de ser o espectador a recriar dentro de si pois o artista só nos permite visualizar as causas de algo ou as suas consequências. Nele participamos de forma totalmente individualizada na solidão de um personagem ou de uma paisagem fazendo surgir em nós a ideia de que já vivemos - de forma angustiada - aquele momento.
O quadro "Nighthawks" tornou-se, assim, um ícone da América urbana e solitária. E através dela tornou-se também identificável para nós. Substitua-se o restaurante do quadro por uma daquelas roloutes de bifanas que existem na 24 de Julho. Quantas vezes, às tantas da manhã, depois da noite regada a alcool, não sentimos nós já a solidão que assola os personagens do quadro?
Muito mais podia ser dito mas francamente agora é hora de ir trabalhar.
Por vezes as horas aqui no ganha-pão arrastam-se indolentes. Como se algo estivesse prestes a acontecer e nunca mais acontece...
Valha-nos o google e os pintores americanos.

1 comentário:

Anónimo disse...

No quadro de Hopper, o jogo de luz e sombra, bem como o ângulo e a distância com que é pintado parece-me uma cena de um filme, susceptível de ser interpretada de duas formas:
1) É a imagem inicial da cena. Em seguida, vamos ver a câmara a aproximar-se, a entrar para dentro da vitrina, e a filmar o homem e a prostituta(?), a falarem e a pedirem as bebidas.

2) Estamos a ver a cena pelos olhos de uma das personagens do filme. Ele está a olhar para dentro do café, e vê a mulher (que conheceu há pouco e com quem tem saído) com outro homem.

Em qualquer dos casos, acho que é a mulher quem está no spotlight, por causa da luz forte que incide sobre a sua pele branca e vestido escarlate (a cor mais quente e brilhante do quadro).