segunda-feira, 14 de julho de 2008

Filhos de um deus menor

Estava eu a meio de mais uma tarde sonolenta no ganha-pão quando me aterrou na caixa de mail nova newsletter da Space Review, uma revista on-line destinada à promoção e reflexão das questões espaciais. Jeff Foust, o seu director, é um jornalista espacial, trabalhando como analista na Futron Corporation do Maryland; por outras palavras é, como eu, alguém que passou de "Neerd" a "Geek". Só que (muito) mais bem pago.

Calhou a newsletter desta semana ser especialmente interessante e adequar-se como uma luva ao presente! Com efeito, a temática do post "Crepúsculo dos Deuses" trata necessariamente, para além do poder da América, da diminuição do poder da Europa, o qual, deixou um espaço vago que a URSS e os E.U.A. ocuparam durante a Guerra Fria e actualmente é ocupado pela América sozinha, rodeada apenas por um punhado de "candidatos a candidatos".
E existe também a cimeira Mediterrânica. Não que tenha grande mérito, para além dos proverbiais apertos de mãos e fotos oficiais. Sempre dá, porém, para os vizinhos se falarem e, mais importante, aproveitando o desfile do 14 de Julho, para o Líbano e a Síria se encontrarem frente-a-frente, "convidados por Sarkozy, como que por acaso", sem suscitar histerismos nos respectivos extremistas, como já topou o sempre atento Sic Semper Tirannys.

No que diz respeito ao artigo da Space Review: "French military space policy: more of the same", de Taylor Dinerman, o que me chamou a atenção foi a tese apresentada de que o desejo francês de adoptar uma política militar espacial independente, revela apenas um espantoso erro de cálculo que poderá (infiro eu) ter consequências desastrosas para a Europa. Segundo Dinerman, as razões para a França fazer isto não se prendem apenas com basófia política (que existe). Existe também um lado oculto (embora fantasioso) de que caso os E.U.A., um dia, saiam da Europa (a bem ou a mal), os políticos europeu se voltem para a França como fornecedora de protecção, liderança militar e, sobretudo, brinquedos bélicos. Esta tese, para além dos lucros económicos envolvidos, postula que nesse dia, um século de humilhações (não sejamos mauzinhos iniciando a conta em 1870) e impotências várias sejam vingadas: sem disparar um tiro, a França assumiria o controlo efectivo da Europa, santo Graal deste país deste Luís XIV (senão antes).

E como conseguirá a França alcançar esse desiderato? É simples: em termos de doutrina militar, e ao invés dos restantes países Europeus, a França tem seguido uma política "generalista", isto é, as suas forças armadas pretendem ser uma espécie de "exército americano em miniatura", tendo tudo o que este tem, mas em menor quantidade.

Infelizmente, dada a realidade das coisas, esta ambição tem como consequência, segundo Dinerman, paralisar as forças armadas francesas numa hipertrofia de objectivos, armamento e efectivos que tornam pesada a sua eficácia no presente em favor de uma hipotética capacidade futura. Postula o Eliseu (desde De Gaule) que os europeus tendo forças "especialistas" e, portanto, incapazes (teoricamente) de se defenderem sozinhos, se voltariam para a única potência "generalista", num aperto. A abrangência de capacidades do exército francês, mostrar-se-ia, então, por defeito, a fonte única de capacidade de coordenação (isto é, liderança). As forças armadas francesas seriam "insufladas" pela Europa, tiritando atrás de si (como a "Grande Armée" de Napoleão, com 40% de efectivos recrutados na Alemanha, Espanha, Portugal, itália, etc., bem como, a sua marinha - cheia de espanhois, holandeses e até dinamarqueses e suecos).
Esta retorcida lógica, fruto de décadas e décadas de impotência, assenta porém, em falácias:
- Em primeiro lugar, não se percebe muito bem como reagirão, em termo de rapidez de mobilização, as forças armadas francesas no caso da retirada americana ser rápida (ou até caótica). Uma coisa é ir dar uns tiros à Costa do Marfim, outra enfrentar, sozinha, ameaças de grandes potências.
- Caso a retirada seja gradual e "enquadrada politicamente" como sabe a França que pode, também gradualmente, substituir a América? E se só poder garantir "um bocadinho de protecção? Quem garante o resto? Uma amálgama de regimentos europeus?
- Neste ultimo caso, se a França abdicar a meio do caminho deste plano megalómano e permitir aos outros países Europeus criarem um verdadeiro "exército comum", no qual, terá necessariamente de partilhar a liderança, que acontecerá então? Deitará fora décadas de doutrina militar sob a pressão dos acontecimentos? Tentará perigosas porque ambíguas "formas híbridas" para salvar a face? Qual será a capacidade combativa de semelhante força, se nascer desmoralizada e cheia de atalhos políticos?

Entendo que este caminho não irá levar a bom porto, porque reduz de forma significativa o espaço de manobra e a flexibilidade necessárias à defesa da Europa. Também não sabemos, caso haja uma ameaça, se os países europeus a verão da mesma maneira. Os instrutivos acontecimentos da Jugoslávia dos anos 90 e da participação inglesa na II Guerra do Golfo são de muito mau agouro.
Tendo em conta a inexistência de um exército europeu e as ameaças ligadas à diminuição das reservas de petróleo (essencial para pôr a andar os brinquedos bélicos), é bom que se pense na política que a França estouvadamente leva a cabo.
Winston Churchill disse uma vez "Graça a Deus existe o exército francês".
Infelizmente disse-o em 1939.
Acho que "pensar a Europa", como se diz por aí, é bem mais do que pensar em tratados de papel.

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