sábado, 5 de abril de 2008

Foto Safari aos Conventos

As prometidas visitas aos Conventos já foram realizadas bem como as fotos. Segunda-feira, nova visita à Faculdade para entregar à S. os resultados do presente safari, portanto. Só espero que as gravuras antigas do convento, enviadas a partir do computador da Irmã R. não se tenham perdido no ciberespaço ou dado meia volta ao esbarrar na satanica realidade da minha conta de mail. De facto, são agora 22h00 e ainda nada: vazio que me parece um ominoso sinal. Só espero que tenham chegado ao site do Centro.
Necessário é agora realizar a prometida reflexão sobre os Conventos e os seus habitantes (ver post Plácidos Domingos).
Em primeiro lugar o novo convento: por fora é todo ele modernidade. Ou seja é monilitíco como o cimento de que é feito. Existe mesmo a omnipresente relva selvagem irrompendo pelo betão do chão do parque de estacionamento (tem um sim, os antigos conventos não dispunham de cavalariças? Então?). O cimento das paredes exteriores e as grades do portão de entrada mostram na carne os flagelos da atmosfera lisboaeta. Não se trata de incúria; trata-se da realidade da arquitectura modernista, ela própria um reflexo do tempo que a concebeu: é muito bonita e luzídia ao princípio mas com o tempo e por causa dos materiais escolhidos, dissolve-se na paisagem. O estado final do edifício modernista, suspeito, não são ruínas melancólicas mas escombros de betão corroído e ferros ferrugentos. Isto é irónico ao ponto de ser trágico, duas qualidades ausentes destes tempos finais: afinal a natureza irrompe através do cimento com muito mais facilidade do que através da pedra e do mármore.
Existe paz no exterior; no sentido em que existe paz num bairro social ao Sábado de manhã. Passa por entre aquelas paredes erectas em cimento armado um vento vazio muito diferente do vento deserto que se sente soprar, por exemplo no Mosteiro da Arrábida, junto às curvas dos Ermitérios.
Por falar em curvas: porque diabo a arquitectura modernista é despojada de curvas? É irónico - uma vez mais - que na era da libertação da mulher a arquitectura não possua uma gota feminina. É uma paisagem de menires paralelipipedais erectos em direcção ao céu e ao sol, elementos masculinos por excelência. E não me venham falar que a arquitectura moderna também tem curvas, como este grotesco absurdo austriaco. Estas frívolas demonstrações da cultura contemporânea tem tanto de feminino, como por exemplo, um Imperial destroyer. Digam-me: sou só eu ou vocês também notam as semelhanças?

Mas voltêmos ao Convento. Por causa da minha incurável preguiça, só toquei à porta do dito por volta da 13h00 o que talvez confirme o adágio de que "à hora do almoço aparece sempre mais um". O "irmão-porteiro" recebeu-me e, após uma breve hesitação ("nós almoçamos às 13h15", disse-me) decidu-se a mostrar-me a casa. Notei que não envergava hábito.

O interior é bastante belo, diga-se. Há de facto uma paz genuína e é um sítio acolhedor. O claustro é aprazível: parece um jardim japonês e dele vê-se a igreja e algumas salas através de grandes vidraças ao nível do chão, levemente escurecidas. O recinto parecia convincentemente isolado do mundo abrindo num quadrilátero para o céu que entretanto azulara de novo - estava e esteve um dia sempre cinzento e baço, hoje. Pensei: será que em domingos de jogo grande o bruá das massas histéricas do coliseu ali ao lado vem perturbar a paz dominical dos monges?
Só me pareceu que o claustro carecia de um pouco mais de espaço. Também não vi bancos. E porque razão não existe aquela espécie de corredor a toda a volta (escapa-me o termo técnico) enquadrado por colunas e arcos que se costuma ver nos conventos tradicionais? Parecem-me tão adequados à contemplação os bancos de pedra sempre presentes nesses corredores (vem-me à lembrança o claustro do extraordinário convento de Santi Quattro Coronati em Roma).

Dirigimo-nos depois para a Igreja, sem dúvida o ex-libris do convento. Aqui gostei verdadeiramente do que vi: a nave é espaçosa , solene e acolhedora ao mesmo tempo. Existe uma luz indefinida e diáfana que se mistura muito bem com a penumbra. Descobri que a luz do dia cai para o chão através de uma abertura lateral encaixada a todo o comprimento da nave. Existe também a atrás referida janela para o claustro que por sua vez faz entrar mais luz e, junto ao altar, um imenso, mas localizado, jorro de claridade branca vinda do céu ressalta na alvura do pano branco sobre a ara. O betão, escuro, absorve toda esta luz e mostra, afinal, como este material pode propiciar resultados felizes.

Em relação às celas, julguei serem mais numerosas. Encontram-se todas num corredor com uns vinte metros de comprimento. À primeira vista parece tudo muito desarrumado e o irmão que me servia de guia pediu desculpa por não me deixar fotografar a sua cela, pois "está caótica". Um olhar mais atento, porém, verifica que aquela é a dessarrumação própria dos espaço de muito trabalho: pilhas de livros ocupam carrinhos de transporte como aqueles que existem nas bibliotecas e há, por todo o lado, caixotes com mais livros por desembrulhar. Lembrei-me da maqueta que vi na área comum do convento e que ostentava, orgulhoso, um espaço destinado a Centro Cultural: que pena não ter sido construído! Seria bem proveitoso à minha freguesia e um polo de atracção para visitantes e estudiosos: teria um pequeno Cluny à porta de casa! Espero que a Câmara de Lisboa quando sair da falência e a Junta de Freguesia quando sair da dormência se lembrem que têm este projecto de interesse público para servir de contrapeso à vendilhice do Colombo e às actividades circenses do Coliseu da Luz. Tive pena de não lhe ter pedido para espreitar a biblioteca e o scriptorium; porém a hora que era inibiu-me de lhe fazer mais pedidos e, após mais algumas fotografias, abandonei o convento deixando o esfomeado irmão ir sacear a sua fome.

***

Às 16h30 sob um céu cinzento e baço, prenhe de trovoadas, apareci com o meu amigo T. e a namorada, a A. (que é arquitecta), à porta do palacete onde a religiosa portuguesa Teresa de Saldanha fundou e instalou a casa-mãe das Irmãs Dominicanas de Santa Catarina de Sena. Trata-se também de um estabelecimento Dominicano, embora com recursos muito mais humildes que os seus poderosos irmãos. Esta família da Ordem Dominicana feminina, fundada por uma portuguesa no século XIX, pelo que me pude aperceber, conheceu demasiadas vissicitudes causadas pela turbulenta história portuguesa dos séculos XIX e XX para poder prosperar com maior tranquilidade. Mesmo assim, do esforço resultou uma comunidade bastante simpática, a qual, ocupa com a sua creche, escola-refúgio para crianças com problemas sociais e edifício administrativo, metade do palácio que já foi seu e que agora o Estado faz a mercê de emprestar às irmãs. Aos poucos, o espaço vai sendo recuperado. Mas é visível que cada camada de estuque , cada lâmpada de electricidade e cada criança albergada deve provocar um escrutíneo mais denso que o do actual ministério das Finanças nos ordenados dos funcionários públicos dos Índices e escalões mais baixos (claro).
Notei um certo azedume para com o Estado, identificado com um "eles" de som ligeiramente amargo: 1910, e o que se calhar é pior, a desatenta e sovina actual IIª Republica, são realidades presentes e madrastas. Deve ser duro ocupar um espaço que lhes foi dado pela fundadora e serem tratadas como um qualquer inquilino.

O espaço em si não é propriamente um convento no sentido em que o edifício dos Dominicanos homens é. Este é um espaço que gira em torno das crianças que serve e da administração das actividades da Ordem. Ironicamente é, à sua maneira, um espaço mais ligado ao meio social envolvente que o Convento dos homens: é mais improviso e mais adaptação; a arquitectura do espaço é uma sucessão de estilos e remendos resultantes da situação algo precária de inquilinos e da sua irrequieta história. Não foi construído de raiz em dois anos e cinzelado com tiques e toques modernistas; foi feito por várias pessoas, instituições e nascido de desejos por vezes contraditórios dos seus sucessivos ocupantes. Tem também outra qualidade, a qual se nota nos jardins (os quais, segundo me disse a Irmã R. já foram em tempos maiores e mais belos que os do Marquês de Fronteira ali ao lado). Os jardins são entrecortados com hortas e arvores de frutos. Ali não há flora zen. Mas há pássaros a esvoaçar e abelhas zumbindo e existe um dessassossego vegetal que deixa adivinhar a existência de um verdadeiro ecossistema vivo e em constante adaptação.
Como o resto do local, aliás.

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