sábado, 12 de abril de 2008

História de encantar I

A história para encantar que se segue é dedicada à minha colega C. para ela contar, antes de deitar, à sua filha, a qual está doente (nada de grave; uma doença de criança apenas):


Conto do Reino encantando das águas


Era uma vez, no Reino encantado das águas, uma rainha, algumas duquesas, vários condes,
numerosos cavaleiros e uma multidão de camponeses. Durante muitos anos estas pessoas viviam felizes e contentes nas diversas vilas e aldeias do país das águas. Um dia, veio um dragão e colocou uma nova rainha no lugar da anterior enquanto que, libertando fogo pelas narinas, ameaçou todos os habitantes, nobres e vilões, com a maldição da "privatização", uma coisa horrível que iria modificar a vida de todo o reino.
A princípio, depois do dragão desaparecer misteriosamente no ar (tornou-se invisível), os habitantes do reino ficaram todos muito quietos, esperando que a sua inactividade dissolvesse o encanto maléfico caído sobre o reino. Infelizmente, a nova rainha desatou quase de imediato na criação de novidades sucessivamente mais aterradoras, sobressaltando todos, da duquesa ao mais infímo camponês. Primeiro mudou-se a bandeira do reino e todos resmungaram pelo dinheiro gasto. Depois cortou-se nos rendimento da gleba dos camponeses, aumentando-se a jorna de cada um (os nobres não foram muito afectados, claro) e do seio do povo ergueu-se até aos céus um uivo de angústia. Depois veio uma nova forma de transmitir a informação entre os habitantes do reino, coisa que obrigou todos a trabalharem mais depressa e, o que é pior, a saberem-se vigiados por pequenos gnomos dentro dos respectivos computadores que marcavam o dia de conclusão prevista para o trabalho. Finalmente despenhou-se sobre o reino a anunciada mudança de pouso dos moradores do reino. A rainha indicaria novas moradas para todos, desde a duquesa até ao pequeno camponês. Nobres que toda a vida haviam vivido em determinada vila teriam agora que mudar-se para o outro extremo do reino; camponeses ter-se-iam de levantar mais cedo para cumprir a sua jorna num alqueire mais distante que o habitual. Houve até um conde, ante o desespero de se ver arrastado do seu bucólico castelo - onde era um pacífico quase-rei - para um esquecido canto da capital do reino que ameaçou simular loucura - como Ulisses - esperando que o deixassem em paz no rame-rame do costume, mas longe dos olhares da corte.
De facto, muitas vidas, sobretudo entre os camponeses, ficaram subitamente mais complicadas. O desespero emprenhou-se mais e mais entre todos.

***

A tenacidade da natureza lusitana é, porém, um nada garboso principe que há-de matar o dragão a golpes de passividade, qual espessa lama capaz de emperrar o mais tenebroso feitiço. Tal como a Equity Private explicou, para uma outra sociedade, "Man is basically lazy. Innovative and complex incentive and disincentive structures must be continually created and refined to compel any desirable behavior (including the absence self-destructive behavior). Excessive gaming of the system will be employed at every opportunity to avoid doing anything resembling work." (post: Kierkegaard, Scientologists, Private Equity). Portanto, a cada uma das novidades impostas ao Reino, cada uma das classes - e à sua própria maneira - tratou de adaptar-se, buscando continuar a praticar os velhos hábitos sob novas roupagens. Um exemplo interessante é o de um certo escudeiro - membro, portanto, do mais baixa estrato da nobreza, logo abaixo dos condes - que leva o procedimento acima descrito a níveis verdadeiramente artísticos.
Calhou um dos camponeses sob sua tutela ter encontrado hoje, a seguir ao almoço, um dos cavaleiros conhecidos do referido escudeiro que informou - rindo - que ele se encontrava no castelinho de que é responsável. Dizia o cavaleiro: "Aquele
#*@*% da #%#* está a fazer que trabalha lá no castelinho. Pica o ponto e depois fica por ali a brincar no computador. Mas hoje, já soube mandar a boca que eu [o cavaleiro] venho mandriar ao Sábados e depois pisgo-me. É um %##@ de !%#=#". Riram-se ambos e o camponês pensou para consigo, em jeito de moral da história:
"Por mais voltas que dêem a este Reino, os seus habitantes hão-de encontrar sempre jeito de criar novas vantagens pessoais usando o próprio caos provocado pela mudança. É tal e qual como no Leop
ardo do Lampedusa: é preciso que algo mude para que tudo fique na mesma".


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